Sobre

História & memória

Maria Paula Nascimento Araujo

Nos últimos anos a questão da memória passou a ocupar um lugar central no debate entre historiadores, filósofos, cientistas sociais, juristas. A partir de questões levantadas por Maurice Halbwachs, em sua obra “A Memória Coletiva”[1], um novo campo de investigação surgiu abarcando temas relativos à  construção de “memórias nacionais” e toda a rede de disputas e negociações políticas a elas subjacentes. Alguns historiadores franceses deram efetiva contribuição a este campo. Pierre Nora estudou a construção do que chamou de “os lugares de memória[2] e  Michel Pollak chamou a atenção para os processos de dominação e submissão das diferentes versões e memórias, apontando para a clivagem entre a memória oficial e dominante e “memórias subterrâneas”, marcadas pelo silêncio, pelo não dito, pelo ressentimento[3]. Henri Rousso também estudou os processos de enquadramento da memória[4]. E Pierre Ansart sublinhou a influência dos sentimentos, ressentimentos e paixões na construção da memória[5].

Este questionamento é hoje aprofundado por pesquisadores que se voltam para o tema da memória relacionado ao trauma político e aos grandes genocídios contemporâneos: o holocausto, as ditaduras militares da América Latina, o regime de segregação racial da África do Sul, a guerra do Kosovo. Historiadores e cientistas sociais têm se dedicado a estudar as implicações políticas da memória e do esquecimento na construção das narrativas históricas sobre estes episódios.

Para o estudo da história recente do Brasil o tema da memória é crucial: ele permite que se investigue as disputas pela versão oficial dos acontecimentos; as negociações estabelecidas entre os diferentes grupos sociais; as versões vencedoras e as submissas; os esquecimentos e ocultamentos; os usos políticos e jurídicos das diferentes versões.

A contribuição da história oral

A história oral tem sido uma ferramenta importante para os pesquisadores que estudam as temáticas da memória e do tempo presente. Acostumados a trabalhar com os “mortos” e seus registros, os historiadores passaram a trabalhar com os “vivos”. E a organizar, para a posteridade, os registros destes personagens – na forma de gravações de entrevistas e depoimentos. Como sublinhou Chartier, a História Oral articulada com a História do Tempo Presente promove um encontro com seres de carne e osso que são contemporâneos do próprio historiador[6]. Um novo tipo de acervo começou a ser criado nas universidades e centros de estudos históricos: os acervos de História Oral.

Entre os vários tipos de procedimentos existentes na História Oral, para organizar este acervo, optamos por relatos de vida, isto é, por longos depoimentos que permitem recuperar a história de vida dos sujeitos escolhidos. Entendemos que esta é a modalidade de fonte oral que permite um maior e mais diversificado aproveitamento por parte dos pesquisadores. Paul Thompson, em seu livro “A Voz do Passado[7] destacou que “no sentido mais geral, uma vez que a experiência de vida das pessoas de todo tipo possa ser utilizada como matéria-prima, a história ganha nova dimensão”.

O sociólogo italiano Franco Ferrarotti, em seu livro “História e histórias de vida” [8], aponta para a possibilidade de  ler uma sociedade através de um conjunto de biografias. Segundo Ferrarotti as múltiplas histórias de vida de uma época, de uma geração, de um lugar, se inscrevem dentro dos limites e das possibilidades de uma História mais geral – e cada uma dessas múltiplas histórias particulares interpreta, a seu jeito, a História e sua relação com ela.

Breve histórico do Núcleo de História Oral e Memória

Este núcleo existe desde 2005 quando obtivemos recurso da FAPERJ para realizar uma pesquisa com base na metodologia de história oral intitulada “Vidas Cariocas”. A partir daí várias pesquisas foram desenvolvidas dando origem a diferentes acervos de depoimentos: “Arte & Política”, “Memórias de Esquerda” e “Memórias de Vigário Geral”. Entre 2007 e 2009 participamos de um convênio internacional que reuniu universidades do Brasil e da Argentina em torno de um projeto de pesquisa de estudos comparados da história e da memória das ditaduras militares nos dois países. Este projeto foi financiado pela CAPES e nos permitiu injetar recursos na organização e transcrição de entrevistas relacionadas ao projeto “Memórias de Esquerda”. Em 2010 estabelecemos uma parceria com a Comissão de Anistia do Ministério de Justiça para a realização de uma pesquisa em nível nacional, em conjunto com outras universidades, visando a construção de um acervo de depoimentos de pessoas que tivessem sido vítimas da ditadura militar ou lutado contra ela. Foi o projeto “Marcas da Memória”, desenvolvido entre 2010 e 2013 em duas pesquisas consecutivas: História oral da anistia no Brasil e História, imagem e testemunho da anistia no Brasil.

Reunindo os diferentes acervos o núcleo conta com 106 entrevistas digitalizadas. Estas entrevistas, feitas em diferentes épocas, têm distintos suportes e estão em diferentes estágios de tratamento. No atual momento estamos concentrados em padronizar o acervo e estabelecer suportes de armazenamento seguro e colocá-lo a disposição de consulta pública pela internet.

[1] Maurice Halbwachs, “A memória coletiva”, SP, Vértice, 1990.

[2] Pierre Nora, “Entre a memória e a história: a problemática dos lugares”, Revista do PEPG/ PUC/SP

[3] Michel Pollak, “Memória, esquecimento e silêncio”, IN: Estudos Históricos, N.3, RJ, 1989.

[4] Henri Rousso, “A memória não é mais o que era”, IN: “Usos e Abusos da História Oral”, org. Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado, RJ, FGV, 1996,

[5] Pierre Ansart, “História e memória dos ressentimentos” IN: Maria Stella Brescianni  e Márcia Naxara (orgs) “Memória e (re)sentimento”, UNICAMP, 2000.

[6] Roger Chartier, IN: “Usos e Abusos da História Oral”, org. Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado. RJ, FGV, 1996.

[7]Paul Thompson, “A Voz do Passado”, RJ, Paz e Terra, 1992. Neste livro Thompson faz uma avaliação do uso das fontes orais pelo historiador.

[8]Franco Ferrarotti  “Histoire et Histoires de Vie – la méthode biographique dans les sciences sociales”. Paris, librairie des Meridiens,1983.